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sábado, 8 de setembro de 2012

A verdadeira Boneca do Iguaçu

Marli Feeken na frente do “Boneca do Iguaçu”, restaurante dançante que marcou a música paranaense nos “anos dourados”. Reduto de políticos, boêmios e artistas, local começou a perdeu o glamour em meados da década de 1960

“Eu sou a Boneca do Iguaçu”, diverte-se a advogada Marli Feeken, 60 anos, diante da pilha de fotos de seu acervo particular. São documentos inéditos, ela sabe, mas apenas há pouco decidiu trazê-los à baila, desenterrando um capítulo importante do lazer e dos costumes em Curitiba e Região Metropolitana – a história do Boneca do Iguaçu, restaurante dançante que teve seu auge do início da década de 1950 a meados da década de 1960. O resto é pó.


“Todo mundo ia lá”, escreveu o pesquisador Apollo Taborda França num dos raros textos sobre o estabelecimento, publicado na Gazeta do Povo em 1993, por ocasião dos 300 anos de capital. Iam inclusive os cantores Orlando Silva e Emilinha Borba, para citar dois astros que se apresentaram na casa. Comia-se alguma poeira, mas valia o preço, dizem testemunhas.


Falar no Boneca do Iguaçu – o preferido de ninguém menos do que o político Moysés Lupion – é necessariamente recorrer à “fonte oral” Marli Feeken, filha dos alemães Harry e Eva Feeken, figuras que renderiam um daqueles impagáveis filmes em preto e branco. Eram alemães – ele luterano, ela, tudo indica, judia, ambos foragidos da Segunda Grande Guerra e entregues às delícias do Mundo Novo. Harry mais do que Eva, diga-se. “Papai... um boêmio”, lembra ela. Antes de empresário da noite, Harry foi músico da Banda Trianon, das mais famosas dos pinheirais nos tempos do Cassino do Ahú.

Harry Feeken

Eva não gostava de esperar o marido voltar do mais famoso espaço de jogatina, cantoria e elegância do Paraná da primeira metade do século 20. Mas nada que demovesse Harry de trabalhar como pintor de dia e contrabaixista à noite. A não ser que ele tivesse sua própria casa noturna. Foi assim que tudo começou.

Eva e Marli Feeken

“Ele vinha de Hamburgo. Não me espanta que tenha construído um dique no terreno alagadiço que comprou em São José dos Pinhais”, calcula Marli, sobre a saga da construção do restaurante. Era todo em enxaimel, mas alagava a cada cheia do Rio Iguaçu e ficava longe da capital para os padrões da época. Mesmo assim, vingou. Motivos?

Harry cumpriu a promessa e parou de tocar na Banda Trianon. Mas levou as bandas até o Boneca do Iguaçu, que se tornou endereço de nomes como o negro Genésio Ramalho; Giuseppe Bertollo, o Beppi; Arlindo Montanari. E Cláudio Todisco, acordeonista de fina cepa, para citar só alguns. Mas nem só de boa música vivia o restaurante. Havia o sorvete, o pastel, o pudim caramelado, o bife a cavalo – uma picanha com dois ovos estrelados. “E tinha o cast”, soma Marli, sobre a legião de garçons, que dormiam no emprego.



Seria perfeito, mas não uma garantia de sucesso se não fossem Harry e Eva. Ela cuidava da cozinha e daqueles requintes da etiqueta alemã. Ninguém saía sem cartãozinho de agradecimento e coisa e tal. Ele respondia pelo sonho, atraindo as melhores cabeças da cidade até São José dos Pinhais. Só lhes faltava uma coisa – um filho, ou melhor, uma filha.


Os dois imigrantes esperaram 17 anos por uma criança. Eva engravidou só aos 38. O nome “Boneca do Iguaçu”, estampado na fachada, já existia na casa dos Feeken, ao se referirem ao rebento que queriam. Marli, a “Boneca”, veio em 1952. Mas teve de esperar uns bons 40 anos para falar desse assunto. É simples entender – Harry adoeceu em 1964 e arrendou o restaurante, que aos poucos mudou de perfil, passando a ser associado a uma espécie de rendez-vous. “Acho que meu pai morreu de desgosto ao ver aquilo”, lembra a filha, que chegou a sofrer bullying ao ser reconhecida como “a menina do restaurante”. “Boneca” ganhou sentido pejorativo. Ela se calou.


Mas agora é passado. De volta a São José dos Pinhais, onde passou a residir nos anos 2000, Marli se viu apresentada como “história viva”, com mimos. Animou-se a doar parte do acervo particular para o Museu Municipal Atílio Rocco. E está à disposição de quem queira saber mais. É só pedir pela Boneca do Iguaçu, a legítima.


Na divisa - Confira pequenas histórias do restaurante de São José que civilizou Curitiba:

Onde fica: O Boneca do Iguaçu ficava onde hoje passa a Avenida das Torres, na altura do Portal de São José dos Pinhais. Tão famoso, dá nome a um dos bairros da cidade. Harry Feeken morre em 1966, em decorrência de problemas respiratórios.Vira nome de rua na região. Eva morre em 1978.

Na moral: De acordo com Marli Feeken, seu pai, Harry, era boêmio, mas muito moralista. Rigoroso, ordenava que a filha falasse alemão em casa. Fincado à porta do Boneca do Iguaçu, exigia dos clientes que usassem gravatas e se certificava da idoneidade das acompanhantes. “Só se passava da porta de gravata. Se não tivesse, ele emprestava uma de reservas criadas para esse propósito.”

Os grandes: Aníbal Khury, Aírton “Lolô” Cornelsen, Erondy Silvério, Iberê de Mattos. A lista de políticos com cadeira cativa no Boneca do Iguaçu é longa. Não raro, o local abrigava recepções de embaixadas. Dona Hermínia Lupion também era frequentadora, ao lado do marido. “Vê-los era a situação mais comum da minha infância.”

Destino: Em 1964, o Boneca do Iguaçu foi arrendado para o Frigorífico Argus, que o manteve aberto até a década de 80, passando para o Frigorífico Arthur, até 1998, quando teria fechado. A data é incerta.

Filme triste: O músico Cláudio Todisco compôs a valsa “Boneca do Iguaçu” exclusivamente para ser tocada no dia em que Marli Feeken fizesse 15 anos, em 1967, em grande estilo. Mas Harry morreu um ano antes e a festa não aconteceu.

Marli Feeken

Fonte: Gazeta do Povo
Fotos Arquivo Marli Feeken

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